segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Cotidiano Fantástico #6 - Perspectiva

No tempo em que as paradas de ônibus eram lajedos de concreto, Maurício pré-concebia uma mudança de perspectiva na sua vida. É fato que o demasiado sucesso dos ninjas, assassinos do Japão feudal, se baseia, dentre outras características, no fato de que os seres humanos tem uma incapacidade natural de olharem para cima e admirar o que por ventura esteja a caminho de acertar suas cabeças. A cultura de “olhar para o chão evitando cair em algum possível buraco” declinou nossa habilidade de usar da visão periférica e calculo mental para permanecer atento na área que consiste no “acima de nossa cachola”.

No entanto, Maurício, perdia um tempo considerável admirando essa área visual pouco explorada. Durante seus momentos de inércia, perdia-se em pensamentos sobre teias de aranha no canto da sala, princípio de infiltrações no teto, o formato das nuvens no céu, a luz fluorescente e os mosquitos que a rodeavam. Evitava ao máximo olhar diretamente para frente, escolhia sempre um ângulo que desse para perceber ao menos o movimento ilusório dos prédios enquanto se deslocava pela rua, e intrigava-o o fato da solidão do concreto armado no meio da selva de pedra, e de sua própria solidão em meio a vida selvagem.

O combo de sempre era o que atingia Maurício, não gostava do seu trabalho e de qualquer forma estava prestes a ser demitido mesmo, as contas do seu apartamento alugado o consumiam demasiadamente e sofria desilusões amorosas que o perseguiam nas noites de solidão. Enfim que um dia surtou, ao voltar do trabalho lá pelas tantas da noite, decidiu que não queria mais viver a vida do chão e inverteu a perspectiva, escalou o ponto de ônibus e fez do teto da parada sua cama naquela noite fria, junto a poeira da fumaça impregnada no concreto e as culturas de musgo que se protuberavam.

Na manhã do dia seguinte, se espantou Maurício por não terem interrompido seu sono acusando-o de loucura e mandando ele descer da parada. Ficou por lá, admirando a nova vista de cima. Como era lógica a solução de todos os problemas da humanidade, só um olhar de cima e poderia realizar filosoficamente a felicidade de estar um pouco mais perto do céu. Ao menos uma coisa passava a incomodar essa lógica aérea de Maurício, sua imperceptível estada na nova morada era inconcebível, ninguém parecia perceber que havia um homem vivendo encima da parada de ônibus, o que já era natural para os que andam apressados olhando para o chão, mas existiam os passageiros dos ônibus, os moradores de apartamentos, as pessoas que o olhavam de cima estavam tão presos ao chão que não percebiam ou não viam nada de anormal encima do ponto, por mais que Maurício tentasse chamar alguma atenção parecia invisível para os demais.

Apesar de tudo, conseguia constituir uma vida minimalista no teto de concreto, sem luxos e sem exageros, apenas a boa ventura de desligar-se das aflições da realidade. De comer servia o musgo que crescia rapidamente nas bordas do concreto, de beber servia a agua das chuvas que ficava encalhada encimada parada, o excremento não era problema, pouco e inodoro devido a dieta de musgo que comia, jogava direto no caminhão de lixo que passava e urinava na rua mesmo quando ninguém estava olhando.

A vida era perfeita, e aos poucos Maurício foi descobrindo os segredos dessa nova estadia. Descobriu que a mesma regra da invisibilidade encima das paradas servia encima dos ônibus, então aproveitava um bom tempo de seu dia vislumbrando a paisagem de cima dos coletivos. Visitava outra paradas e ocasionalmente dormia fora para renovar os ares, acabou assim por descobrir que não estava sozinho, numa dessas viagens nos circulares da vida encontrou Cláudia, publicitária de 23 anos que desistiu do curso para explorar novas fronteiras, Alberto, que a 15 anos morava no teto de uma barraca e viajava entre as paradas de todo o estado encima dos ônibus interestaduais, e conheceu mais uma diversidade de pessoas que constituíam essa comunidade da “nova perspectiva” e se encontravam encima dos ônibus ocasionalmente.

Tudo parecia uma vida de liberdade e desapego material, eram novos “hipies” se fosse comparar bem seus estilos de vida. Até que uma dessas noites Maurício dormia no aconchego de sua lage fria e suja, mas sentiu um incomodo subconsciente vindo de seus sonhos, pesadelos de que havia uma multidão puxando seus pés para baixo, raivosa e sedenta, querendo desapropria-lo do espaço que conquistara, puxando seus sapatos com tanta força que ele não conseguia se segurar.

Acordou! Ofegante e suado, Maurício percebeu que havia sim, alguem puxando seus sapatos. Um Anjo loiro e fiel aos esteriótipos, com asas longas de penugem branca, caía para trás após conseguir retirar o par de sapatos dos pés de Maurício.

- Mas...o que é isso! Quem é você – disse Maurício.

- Quem eu sou não importa! Eu vim cobrar o aluguel! - Disse o anjo se protegendo com sua asa direita.

- Peraí, mas que aluguel !? Isso é um absurdo ! Eu vivo aqui já faz um tempo e nunca ouvi falar de aluguel nenhum! - Gritou Maurício revoltado com o novo fato.

- É semestral...nova regra...espaço privilégiado tem que pagar aluguel, senão será desapropriado. - disse o Anjo fazendo menção de voar.

- Mas o que !? Isso é loucura ! Eu não vou a lugar algum, nem vou pagar aluguel pra ninguém, tá me ouvindo!? -

- Faça como quiser...mas é melhor arranjar um trabalho quiser ficar por aqui. - Dito isso o Anjo saiu voando e desapareceu na noite fria.

Meses depois, as paradas de concreto foram consideradas demasiadamente perigosas, e foram demolidas, dando lugar as paradas de metal, inofensivas, bonitinhas e inabitáveis, visto que os moradores das antigas não pagaram o aluguel do empreendimento da “nova perspectiva”. Maurício e tantos outros nunca mais foram vistos no chão novamente.