quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Cotidiano Fantástico #4 - Atmosfera

Juliete acordou. Estava deitada sobre uma camada espessa de poeira fina, notou esse detalhe logo após os 5 segundos que seus sentidos levaram para tomar as rédeas da situação. Sentia-se leve, leve como nunca, de dentro pra fora a paz fluía como se fosse vento, embora não houvesse nenhum sinal de qualquer movimentação atmosférica a sua volta. Pensou em não levantar-se, como sempre pensava depois de acordar, com seu lençol em volta das pernas e o travesseiro entre seus braços, era comum relutar em enfrentar o inexorável destino do dia, mas nesse caso em específico, não sentiu o lençol entre suas pernas, nem travesseiro entre seus braços, apenas frio na superfície que seu corpo repousava, e poeira.

Decidiu então tomar um voto de coragem e levantar-se enfim, devia estar realmente entorpecida pelo sono, porque sua reação inicial foi demasiadamente calma para alguem que acaba de perceber estar em um lugar completamente diferente de onde dormiu na noite anterior, uma vastidão cinza e escura, com algumas protuberâncias esquisitas no horizonte, pelo jeito ainda era noite, o céu escuro se estendia por todos os lados e indiferentemente acima, repousava uma meia circunferência, grande, distante e azul, que se chamava Terra.

Por mais que essa informação parecesse perturbadora, na perspectiva de Juliete era incrivelmente calmante, estava sonhando enfim, um sonho extremamente consciente que seu cérebro as vezes titubeava e achava mais real do que logicamente era possível, então dava um passo, outro e mais outro, pegava embalo para um grande salto e ficava solta pelo ar, desfrutando da sensação de liberdade que a baixa gravidade imprimia em seu corpo. Só num sonho poderia se sentir tão bem, era o terceiro elemento que a fazia deixar de lado a possibilidade de acordar, o sonho era uma narrativa perfeita por ser tão fantástica e não depender de outras pessoas para acontecer, apenas de suas projeções. No sonho tudo é reversível, ninguém precisa de motivação e pode se fazer o que der na telha sem esperar julgamentos, então Juliete pulava para sentir aquela sensação gostosa de vertigem que se sente quando estamos em queda-livre no sonho.

Depois de um tempo considerável perambulando pelo satélite, saltando crateras, chutando a poeira e vendo ela voar plasticamente lenta como se fosse num aquário, começou a concluir que estava sozinha nesse sonho, selecionou algumas pedras que achava mais aerodinâmicas (não que isso fizesse qualquer diferença sem a resistência do ar) e começou a atira-las em direção a terra, quem sabe a aceleração adquirida pelos pequenos pedaços de solo lunar não atingisse uma contagem tal que resultasse numa chuva de meteoros desastrosa, que atingiria a Terra causando uma catástrofe de proporções tais destruindo o planeta numa Supernova. Começou a por todas as suas frustrações naqueles pedregulhos, e olhe que eram muitos, todos em sua maioria direcionados a pessoas em específico ou pelo menos a coisas que as pessoas tenham feito ou dito que a faziam perder cada vez mais expectativa no futuro da humanidade, e no seu próprio futuro.

Para surpresa de Juliete, o efeito onírico que os projeteis pegaram no espaço causou exatamente a resposta esperada por ela, rastros de fogo cruzaram a escuridão, as estrelas se afastaram numa reação em cadeia, todas se digladiando e expandindo um pouco mais o infinito, como nos CG's do Discovery Channel, raios purpura e nebulosas explodiram, como se fosse aqueles desenhos divinos da via Lactea, alcançando distancias que cruzavam o horizonte do Universo. É claro, todo esse efeito chegou na Lua como uma descarga de peso atmosférico, e aquela sensação de falta de gravidade foi substituída por uma força fulminante que pregou o corpo de Juliete no chão. Pedaços de própria Terra cruzavam o horizonte e se perdiam no limbo sideral, passavam voando pelas laterais do satélite, e o próprio já começava a se deslocar forçadamente de sua órbita.

Durante o tempo que Juliete ficou presa ao solo assistindo o titânico acontecimento galático, ela sorriu, por ter a chance de presenciar uma das cenas mais lindas que sua imaginação poderia ter construído. Fechou os olhos e se deixou levar pela destruição.

Achando que tudo aquilo era um sonho, Achando que algum dia ela iria acordar.